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como bons cristãos, cês curte mesmo é uma meritocracia.
história de superação, volta por cima, trampe enquanto eles dormem, sem tempo pra dor.
cês odeiam quem perde. e odeiam mais quem não joga. cês odeiam quem dá seus pulos e consegue fazer com menos. e cês odeiam demais quem tenta e não consegue, odeiam quem não tem grana pra terapia, odeiam quem não tem a ilusão de vencer.
eu tenho pensado muito que não existe paz no patriarcado, e isso me atormenta. já fui mais otimista, apesar de ainda ser um tanto quando faz sol.
esses tempos atrás eu tive medo medo medo. não sabia o que fazer do meu corpo impotente, tremendo. lembrei de ter 13 anos e achar fielmente que iria morrer toda noite. toda noite, por não sei quanto tempo. as pernas tremiam. lembrei de mim sozinha e silenciosa, sem nem saber por onde começar, como que ia contar pra alguém? lembrei e fui tomar banho morno, me cobrir e tentar escapar dos pensamentos ruins. sozinha porque se algo que eu aprendi é que levantar no dia seguinte depois de ter dado conta é gratificante, de um jeito torto, mas bom. uma hora o sono vai superar o caos da cabeça. aos 13 nada no mundo me convencia de dormir, caía de cansaço, aceitando de alguma maneira muito triste que poderia ser que eu morresse naquela desistência.
e cês odeiam quem desiste. odeiam suicídas e odeiam quem fracassa. e talvez seja só uma maneira de defender suas insistências. a questão é que depressão só é bonito na boca de quem se curou. e cês não quer ouvir desabafo nem reclamação nem conseguem acalentar alguém desolada, muito menos quem chora. como bons cristãos, cês amam mesmo quem fez por merecer, ou seja, quem engoliu pedra e não te deu o desprazer de dividir a carga da sobrevivência com sanidade.

8 de maio 2020

exilada lua em cabra sem lar. deslocada. sem conforto, ninguém sabe quem eu realmente sou. nem eu. sempre em desconforto, fronteiriça. mal estar é lugar comum. aprendi a dissimular e todo dia que eu minto gaguejo menos. na garganta acumulo todos os gritos que não dei. olho firme nos olhos pra dizer qualquer coisa que traduza “você não me atinge” e mesmo que seja perceptível que fui atingida, ela não avança. eu subo muros em volta de mim. errada ou certa, na porta da cara ainda levo escrito “não perturbe”. cada uma sabe de si e de sua couraça.

peixes

eu chorei por quatro horas seguidas porque era a única água disponível p/ encher meu peito de peixe.
[imagine um tanque, ou represa, lago, até mesmo o mar — eu não sei o tamanho do meu peito — cheio de peixes: com a água pela metade eles ficam agitados e angustiados]
eu chorei quatro horas seguidas pra encher meu peito e os peixes poderem nadar tranquilamente.
(…)
ao menos entre nuvens um sol tímido se mostra. a boca do meu estômago dói porque voltei a tossir.
meus olhos agora esbugalhados como dos peixes não trazem realmente surpresa. eu esperava mais da vida e das pessoas e poder chorar é uma bênção: tem gente que não chora.
fui comer pastel na feira de óculos escuros. a cura não é linear.
abundância é coisa séria.

imagine que você está andando na rua, noite caindo e de relance você vê uma bruxa na janela de cima de uma casa. ela te encara profundamente. está comendo um pedaço de pão com as mãos sujas de terra. no parapeito da janela uma arruda. você segue caminhando e sente seu olhar latejando na nuca. A bruxa é você a casa é você a arruda e a janela são você. você também é o pão. não se assuste: você ainda é a pessoa andando na rua.

a bruxa está esperando a tempestade chegar.

———————————————–escrito no escuro.

leveza eu só almejo. aqui o peso pesa o barro de quem veio debaixo da terra deslizando y remexendo terra corpo dança em movimento circular: tronco quadril dedo, me mexo. suja. sou do calor de suor escorrendo embaixo do peito sem top.

meu corpo só respira se tem Sol. sinto saudade do som do trovão.

ciranda em fogo de vela arruda y juana. grande espaçosa que dança toca y canta pernambucana de algum lugar de dentro de antes — de sempre. saber ser só ser grande de fogo y fumaça boa de incenso. corpo quente no frio solstício de inverno eu tanto te temi mas existe uma força nas coisas boas banho bom fumo bom cobertas muitas, roupa em cima de roupa. o eucalipto eu coloquei embaixo do chuveiro. dor na cara que eu cuido com xale e chá de erva. e calor de beijo bom e conversa conversa conversa terapia conversa. frio e ciranda junina ciranda de dentro bruta bruta

não engole cospe. não engole cospe. não entala porta de entrada pra dentro de si. território meu meu porta fechada boca cerrada sorriso que anuncia o bote sorriso que anuncia a dentada tosse. não digere. não digere. oca. nada no teu corpo nasceu para digerir culpa desculpa ausência carência ciúme culpa medo medo medo não engole não se engole ninguém bota na boca tamanho objeto. cospe vê se cospe desencosta aproveita y pula abismo sem janela lembra? lembra garganta sem catarro sem tosse? não engole não engasga tosse. lembra do abismo profundo bonito garganta infinita do escuro da lama preta fértil do corpo nu vestido de nanã do começo da primeira primeira invisível porque escuro invisível porque primeira sem olhos outros pra olhar. era ela o abismo e a lama.

[feito na oficina da Mayara Árvore no encontro Juntá, Sã Luiza da Paraitinga, junho 2019)

ariana [sem juana]
sigo inspirada por sebastiana
[s
mas escorrego escorpião em água funda
coração pique mangue
da lama à lama e pouca iluminação
coração pique mangue
meto a mão
mas é loteria:
lama fértil ou lâmina
de caranguejo
mangueando em furto em pedido esmolando ou afundando memo
mangueio
roubando a vida que nos é roubada
vivendo
a milhão a milhão a milhão
por aqui nada caminha devagar
25 e já to a milhão y a porrada vem muito mais forte do que eu aguento
na mente (sem silêncio) nos braços perna canela y pulmão

sem silêncio:
eu pouco tenho eu não ganho eu ainda não roubei.

viva

se eu estivesse viva
eu te chamaria pra fazer qualquer coisa
nessa lua escorpiana.
descobriria seu gosto
e como você respira comigo perto

se viva eu estivesse
se eu já me pertencesse
cabeça-coração-pulmão

descobriria como respiro sob seu cheiro
e como gosto de passar a língua na sua

se eu estivesse viva.
morrer é metade do caminho
nesse viver cíclico-mulher
morrer é o único caminho de limpeza nesse patriarcado.

quem sabe renasço lua nova.

[de uns meses atrás]

ode ao ódio I

a gente não quer, mas a gente odeia — às vezes a gente quer sim. odeia as tatuagem, o que jeito que fala, onde já foi — principalmente o que pensa y consequentemente o que faz. a gente odeia sim. odeia y parece rivalidade feminina. odeia y parece manha ou ciúmes. odeia y parece gratuito. mas não é. se tem uma coisa que é, é caro. a gente odeia até a tranquilidade. a simpatia y a polidez que aprenderam bem. às vezes odeia e nem pá. olha pro lado, muda de assunto, vai mijar. outras vezes odeia mesmo. do peito latejar. eu odeio e não ligo. não me faz mal odiar. o ódio alimenta a classe de baixo e nos faz mais fortes, mais convencidas y confiantes. odiar o que vem de cima nos dá autoestima às vezes. ganas pra luta.

[o nome pode ser ode ao ódio ou áries pobre. escrevi pensando nesse povo que ostenta drinque de vinte conto no rolê “alternativo”. nesse povo que viaja pras europa e fala “mas aqui é brasil” dando de entender “aqui posso tudo”. esse povo que organiza “som legal”, mas sempre “esquece” de questionar, racializar e tornar acessível financeiramente. esse povo que pensa várias coisas sobre política na bolha de amigas da mesma cor e classe. o nome pode ser ode ao ódio ou áries pobre]