amor y desamor

é uma série de zines* sobre relações lésbicas, reflexões sobre a sujeira do patriarcado, antiromântica, sonhos-brisas de coisinhas que vivemos/poderíamos estar vivendo & tretas.
escrito por uma sapatona ariana, com ouvidos atentos às amigas.

*se a deusa abençoar

contato: brutaarruda@gmail.com

a primeira é do inverno de 2020 e a segunda finalizada no verão de 2020/2021

peixes

eu chorei por quatro horas seguidas porque era a única água disponível p/ encher meu peito de peixe.
[imagine um tanque, ou represa, lago, até mesmo o mar — eu não sei o tamanho do meu peito — cheio de peixes: com a água pela metade eles ficam agitados e angustiados]
eu chorei quatro horas seguidas pra encher meu peito e os peixes poderem nadar tranquilamente.
(…)
ao menos entre nuvens um sol tímido se mostra. a boca do meu estômago dói porque voltei a tossir.
meus olhos agora esbugalhados como dos peixes não trazem realmente surpresa. eu esperava mais da vida e das pessoas e poder chorar é uma bênção: tem gente que não chora.
fui comer pastel na feira de óculos escuros. a cura não é linear.
abundância é coisa séria.

mulher lameada enlamaçada terrível feia y suja como não se pode ser como não se deve ser. braba enlamaçada cheia de lama fala alto, mas silencia quando ouve ventania. também se falam por lá. anuncia quebranto e tragédia ou verão y apaixonamento. fêmea enlamaçada na língua de otra fêmea. não teme o feio sujo y proibido roçar das pernas coxas terra vulvas que roçam esse som tão antigo. escuro. por dentro não há luz. tateamos. e não há um poro no meu corpo que não seja poça d’água funda.

viva

se eu estivesse viva
eu te chamaria pra fazer qualquer coisa
nessa lua escorpiana.
descobriria seu gosto
e como você respira comigo perto

se viva eu estivesse
se eu já me pertencesse
cabeça-coração-pulmão

descobriria como respiro sob seu cheiro
e como gosto de passar a língua na sua

se eu estivesse viva.
morrer é metade do caminho
nesse viver cíclico-mulher
morrer é o único caminho de limpeza nesse patriarcado.

quem sabe renasço lua nova.

[de uns meses atrás]

coma arroz tenha fé nas mulheres – fran winant

Coma arroz tenha fé nas mulheres
O que eu não sei
Eu ainda posso aprender
Se estou sozinha agora
Estarei com elas mais tarde
Se estou fraca agora
Posso me tornar forte
Lentamente, lentamente
Se aprender, posso ensinar as outras
Se as outras aprenderem antes
Eu devo acreditar
Que elas voltarão e me ensinarão
Elas não vão embora do país com seu conhecimento
E me enviarão uma carta em algum momento
Devemos estudar todas as nossas vidas
Mulheres vindas de mulheres
Indo para mulheres
Tentando fazer tudo que pudermos
Com as palavras
Em seguida, tentar trabalhar com ferramentas
Ou com nossos corpos
Tentando ficar o tempo que for preciso
Lendo livros quando não há professores
Ou quando eles estão muito distantes
Ensinando a nós mesmas
Imaginando outras lutando
Devo acreditar que nós estaremos juntas
E construir confiança o suficiente
Para que quando eu precise lutar sozinha
Eu saiba que há irmãs que
Ajudariam se soubessem
Irmãs que viriam
Para me apoiar mais tarde

Mulheres exigindo liberdade
Cada uma com suas necessidades
Nossa vida completamente dilacerada
Pela velha sociedade
Nunca nos dando o amor ou o trabalho
Ou a força ou a segurança ou a informação
Que nos poderia ser útil
Nunca ajudadas pelas Instituições
Que nos aprisionam
Quando precisamos de cuidados médicos
Somos abatidas
Quando precisamos da polícia
Somos insultadas e ignoradas
Quando precisamos de pais e mães
Encontramos robôs
Treinados para nos manter em nossos lugares
Quando precisamos de trabalho
Nos dizem para nos tornarmos parte do sistema que nos destrói
Alimento que nutre
Medicina que cura
Canções que nos lembram de nós mesmas
E nos fazem querer continuar com o que importa para nós

Vamos sair de novo
Encontrando as mulheres que saem pela primeira vez
Sabendo que esse amor faz uma boa diferença em nós
Afirmando uma vida contínua com mulheres
Devemos ser amantes médicas soldadas
Artistas mecânicas agricultoras
Todas em nossas vidas
Ondas de mulheres
Tremendo de amor e raiva

Cantando, nós devemos enfurecer
Beijando, virar e quebrar a velha sociedade
Sem nos tornarmos os nomes que elogiam
As mentes que pagam

Coma arroz tenha fé nas mulheres
O que eu não sei agora
Ainda posso aprender
Lentamente, lentamente
Seu eu aprender posso ensinar as outras
Se as outras aprendem antes
Eu devo acreditar
Que elas voltarão e me ensinarão

fran winant – Tradução por Marcella

1

beijo suas costas
colchão de solteiro boa noite meu amor
se vira
me beija e me beija e sua buceta molhada confirma minha mão
é linda. é linda é linda
goza gostoso em mim
“eu te amo”.

são minhas pernas que formigam. dorme quente e úmida no meu peito. eu não durmo.

vômito

[ATENÇÃO: esse texto é um gatilho para traumas adquiridos pela heterossexualidade compulsória]

Avistou o alecrim e vomitou.
Longamente vomitou.
___nunca mais pode sentir seu gosto, seu cheiro ou ver seu aspecto pontudo sem uma densa náusea.

Vomitou café da manhã-almoço
vomitou água
teria vomitado intestino-útero-pulmão se ainda os tivesse.

Ela estava oca.

Oca desde a terça-feira passada que, ao chegar em casa com a muda da planta alegre na mão foi abordada por seu companheiro que beijoabraçocarinhosorriso a estuprou. Ela empurrou, disse que não tava afim, argumentou cansaço, mas ele queria “transar” então a estuprou. Ela não brigou, nem gritou… sequer falou.
Foi direto pro banheiro
se lavou
e vomitou todos os órgãos ao perceber que nunca havia “transado”.

Era impossível mensurar quantas vezes esteve ali, naquele lugar, segurando a náusea e esperando acabar.
mas nunca havia vomitado.
o cheiro do alecrim era impossível de suportar.

foi embora na mesma madrugada, aos berros.
O som ecoava dentro de seu oco.

Chegou na casa da irmã com arruda num vaso.

Seis dias depois, voltando do trabalho avistou o alecrim e vomitou.

A brisa que surgiu na rua a ajudou a recuperar o fôlego.

lésbica

Lésbica_________________
Aliviada

não-fingir-não-simular-não-fingir-não-sorrir-não-fingir-não-assentir-não-aceitar

não ser agradável

lésbica
estar com o corpo nessa palavra
é como estar com o corpo imerso
no mar
na lama
em nós
em mim mesma.

não sorrir-não agradar-não sorrir-não agradar-não sorrir-não sorrir-não sorrir

É poder antes de tudo negar,
então eu nego.

bonitinha liberadinha gostosinha namoradinha decorativa bi heterossexualizada

Sororidade é quando cê tá com as duas mãos paradas no trinco da janela, aí vem uma mana e abre
estar com o corpo nessa palavra é como estar com o corpo finalmente sob o Sol.

lésbica
janela de Safo
Ilhas de Lesbos urbanas

Viva as sapatão resistência
viva vocês
viva nóis.

reia romana
deusa da vida-morte-vida,
como montanha que é
subo
e me sinto preenchida de espaço.

às vezes tua balança me tonteia,
mas já sei que não almeja arrancar meus chifres.
Sabe admirar força porque é forte.

E se há alguma coisa que gosto especialmente em você, na gente
É essa janela de Safo que aprendi a manter aberta
Agora e para sempre.

Enfim respirando
imersa em lama profunda e fértil
me faço capaz de te dar todo carinho vivo, enquanto vivo ele estiver.