amor y desamor

é uma série de zines* sobre relações lésbicas, reflexões sobre a sujeira do patriarcado, antiromântica, sonhos-brisas de coisinhas que vivemos/poderíamos estar vivendo & tretas.
escrito por uma sapatona ariana, com ouvidos atentos às amigas.

*se a deusa abençoar

contato: brutaarruda@gmail.com

a primeira é do inverno de 2020 e a segunda finalizada no verão de 2020/2021

peixes

eu chorei por quatro horas seguidas porque era a única água disponível p/ encher meu peito de peixe.
[imagine um tanque, ou represa, lago, até mesmo o mar — eu não sei o tamanho do meu peito — cheio de peixes: com a água pela metade eles ficam agitados e angustiados]
eu chorei quatro horas seguidas pra encher meu peito e os peixes poderem nadar tranquilamente.
(…)
ao menos entre nuvens um sol tímido se mostra. a boca do meu estômago dói porque voltei a tossir.
meus olhos agora esbugalhados como dos peixes não trazem realmente surpresa. eu esperava mais da vida e das pessoas e poder chorar é uma bênção: tem gente que não chora.
fui comer pastel na feira de óculos escuros. a cura não é linear.
abundância é coisa séria.

Nanãna. Sempre que eu vejo minha mãe e suas duas irmãs minhas tias pensamos e falamos dela, mesmo que pouco, mesmo que por um instante. Não conheci minha avó e tudo que sei dela é porque me contam histórias sobre sua vida. Sempre fui apaixonada por essa mulher e quando era bruxinha pequena e acreditava em reencarnação, gostava de pensar que eu era ela e ela era eu. nunca contei isso pra ninguém. Esses dias conversando com cibelinha pensava sobre biologia e minha brisa era de que todas as partes do meu corpo, todas as minhas mitocôndrias belezinhas e resistentes, queriam seguir essa linhagem. Não é desmerecendo não, é que nascer com útero é muita coisa. Mesmo que do meu nunca saia uma criança — e não vai sair. Mesmo as que não tem útero, ou que por algum motivo tenha deixado de ter {nanãna tirou o útero com 42 anos por causa de um fibroma}. São ciclos que se impõem, é sangrar sem ferida. Já pensou morrer todo mês? A melhor parte é renascer.
Amanhã minha avó faria 91 anos.

abundância

natural apenas em alguém que não cresceu sob o patriarcado, a qualidade do muito, do transbordante, do não-escasso é muitas vezes ignorada, teoricamente rechaçada ou até sofridamente abandonada.

flerto com a abundância como quem flerta utopias. gosto de sua grandeza marítima, de como ocupa preenchendo como a ventania, a abundância é uma das qualidades mais sensíveis da natureza. a grandiosidade, a quantidade diversa, o sentimento do Todo. Imensidão de tirar o ar. A abundância reside no pertencimento do imenso.

*

onde come uma come duas. bota mais água no feijão. puxadinho. dormir de valete. dividir em duas, em três, em quatro partes… cada uma leva um prato. vaquinha.

__________________abundância em escassez.

*

que as relações entre lésbicas não se pautem na escassez patriarcal, mas na abundância [da natureza]. que a gente crie um novo jeito de afeto. que esse afeto possa ser para amigas parceiras mães artes para si. bastante. que a gente não caia na besteira blasé de frieza de pouco afeto de pouco interesse de pouca admiração de pouco calor.

inventar uma nova ética amorosa lésbica nos baseando em nós mesmas. na abundância marítima que cada lésbica leva no ventre.

*

também é escassez patriarcal todo seu afeto ser direcionado a pessoa com quem transa. e mesmo nas relações livres onde o foco é achar outras pessoas com quem transar. também é pensar fora da ética patriarcal quando retiramos o sexo do centro de tudo.

[são ideias para uma zine]

mulher lameada enlamaçada terrível feia y suja como não se pode ser como não se deve ser. braba enlamaçada cheia de lama fala alto, mas silencia quando ouve ventania. também se falam por lá. anuncia quebranto e tragédia ou verão y apaixonamento. fêmea enlamaçada na língua de otra fêmea. não teme o feio sujo y proibido roçar das pernas coxas terra vulvas que roçam esse som tão antigo. escuro. por dentro não há luz. tateamos. e não há um poro no meu corpo que não seja poça d’água funda.

ciranda em fogo de vela arruda y juana. grande espaçosa que dança toca y canta pernambucana de algum lugar de dentro de antes — de sempre. saber ser só ser grande de fogo y fumaça boa de incenso. corpo quente no frio solstício de inverno eu tanto te temi mas existe uma força nas coisas boas banho bom fumo bom cobertas muitas, roupa em cima de roupa. o eucalipto eu coloquei embaixo do chuveiro. dor na cara que eu cuido com xale e chá de erva. e calor de beijo bom e conversa conversa conversa terapia conversa. frio e ciranda junina ciranda de dentro bruta bruta

zine utopias lésbicas

ACORDEI COM O SOL NA JANELA, vou como de costume assar a massa que deixei crescendo durante a noite. cuando as otras acordarem a casa terá cheiro de pão.
ainda estou semidespida, o calor desse verão é muito forte – eu adoro.
a lembrança que a nudez pode se tornar um problema é distante, como uma pulga atrás da orelha de quem aprendeu a viver com medo.
desaprender leva tempo, mas é mais fácil aqui: onde esse medo não existe concretamente. as meninas que aqui crescem não estão mutiladas pelo medo: jamais carregarão cicatrizes como as minhas y essa certeza me cura.
aos poucos as mulheres acordam. cada uma ao seu tempo. dormimos juntas quando queremos, mas todas têm seu espaço – aprendemos solitude de una maneira doce – o único quarto coletivo fixamente é o das crianças, cuidam-se entre si y se divertem mais em alcateia.
o café da manhã aos poucos se torna una roda animada, umas contam o sonho que tiveram, otras ajudam a interpretar, lembramos de histórias y mitos que ajudam a entender as simbologias, contamos histórias às crias y unas às otras. aos poucos vamos saindo da mesa y geralmente só sobram as mais falantes.
eu peguei o hábito de andar de bicicleta ou à cavalo depois do café da manhã. sentir o vento correr em meu rosto nesse descampado sobre pedras tão velhas,
cuidar do meu silêncio,
tomar sol.

UTOPIAS LÉSBICAS

a zine completa para baixar aqui

ariana [sem juana]
sigo inspirada por sebastiana
[s
mas escorrego escorpião em água funda
coração pique mangue
da lama à lama e pouca iluminação
coração pique mangue
meto a mão
mas é loteria:
lama fértil ou lâmina
de caranguejo
mangueando em furto em pedido esmolando ou afundando memo
mangueio
roubando a vida que nos é roubada
vivendo
a milhão a milhão a milhão
por aqui nada caminha devagar
25 e já to a milhão y a porrada vem muito mais forte do que eu aguento
na mente (sem silêncio) nos braços perna canela y pulmão

sem silêncio:
eu pouco tenho eu não ganho eu ainda não roubei.

aprofundo.
mergulho na espessa poça d’água funda que escorpiana sou
me afundo em respiro breve narina com lama, mas lama da metrópole.
respirar se tornou um fardo, mas não é pra sempre.
irremediável mesmo só o ódio que fervilha meu corpo,
na cabeça grinalda de chifres em fogo-flor
caótica neurótica herética histérica
cria do patriarcado não, sobrevivente.
meu desobedecer é tão frequente quanto seu hálito quente boa noite meu bem.

viva

se eu estivesse viva
eu te chamaria pra fazer qualquer coisa
nessa lua escorpiana.
descobriria seu gosto
e como você respira comigo perto

se viva eu estivesse
se eu já me pertencesse
cabeça-coração-pulmão

descobriria como respiro sob seu cheiro
e como gosto de passar a língua na sua

se eu estivesse viva.
morrer é metade do caminho
nesse viver cíclico-mulher
morrer é o único caminho de limpeza nesse patriarcado.

quem sabe renasço lua nova.

[de uns meses atrás]