A GUERRA DA LIMPEZA

essa zine é sobre a limpeza de espaços coletivos horizontais. escrevi ela porque tem uma microguerra acontecendo na minha casa [e sepá na sua também]. essa merda tem desfeito laços, tem criado ranços, tem mostrado lados insuportáveis de nós.
morar em uma casa coletiva [y exclusiva para lésbicas <3] foi DEFINITIVAMENTE a melhor decisão da vidinha, mas morar nesse formato também é uma decisão cotidiana em superar aprendizados milenares do PATRIARCADO, da SUPREMACIA BRANCA y do CAPITALISMO.

disponível pra ler e baixar
aqui.

ode ao ódio

zine sobre ódio raiva fúria revide y autodefesa.
uns poema-brisa e o texto PEDAGOGIA DO ÓDIO:

“tenho pensado aqui a pedagogia como um processo complexo – e infinitas vezes dolorido – de aprendizagem y entendimento coletivo, onde por meio de troca de informações y experiências atuais y ancestrais, nos refazemos. o processo pedagógico é infinito y acontece o tempo todo por meio de conversas, leituras, aulas, caminhadas, reflexões, danças, carinhos beijos afeto, músicas, discussões & brigas e é sobre essas últimas que quero falar nesse texto.”

completa aqui

zine utopias lésbicas

ACORDEI COM O SOL NA JANELA, vou como de costume assar a massa que deixei crescendo durante a noite. cuando as otras acordarem a casa terá cheiro de pão.
ainda estou semidespida, o calor desse verão é muito forte – eu adoro.
a lembrança que a nudez pode se tornar um problema é distante, como uma pulga atrás da orelha de quem aprendeu a viver com medo.
desaprender leva tempo, mas é mais fácil aqui: onde esse medo não existe concretamente. as meninas que aqui crescem não estão mutiladas pelo medo: jamais carregarão cicatrizes como as minhas y essa certeza me cura.
aos poucos as mulheres acordam. cada uma ao seu tempo. dormimos juntas quando queremos, mas todas têm seu espaço – aprendemos solitude de una maneira doce – o único quarto coletivo fixamente é o das crianças, cuidam-se entre si y se divertem mais em alcateia.
o café da manhã aos poucos se torna una roda animada, umas contam o sonho que tiveram, otras ajudam a interpretar, lembramos de histórias y mitos que ajudam a entender as simbologias, contamos histórias às crias y unas às otras. aos poucos vamos saindo da mesa y geralmente só sobram as mais falantes.
eu peguei o hábito de andar de bicicleta ou à cavalo depois do café da manhã. sentir o vento correr em meu rosto nesse descampado sobre pedras tão velhas,
cuidar do meu silêncio,
tomar sol.

UTOPIAS LÉSBICAS

a zine completa para baixar aqui

ode ao ódio III

o nome daquele sentimento estranho de estar com uma pedra no sapato, mas não parar pra tirar porque se está atrasada pela quarta vez essa semana tornando a manhã dessa quinta-feira já longa demais, contando que ainda são 7h19, é capitalismo.
e já não bastasse ser uma segunda-feira de 16° e chuva, ainda tenho que andar rápido com meu tênis duvidoso meio ao medo de escorregar em alguma tampa de metal e cair, já que estou em cima da hora pra chegar no trabalho.
o nome daquele sentimento estranho de detestar botar seu dedo para uma luz vermelha ler sua digital e então recolher um papel que diz que você não foi rápida o suficiente é capitalismo.

[desenho: eu subindo o último beco antes de chegar no portão do prédio onde trabalho, na minha mão o celular acusa: 8h06min]

o nome daquele sentimento estranho que tantas vezes te impede de curtir o final de um domingo com Sol já que se está adiantando o pensamento doloroso de que amanhã é segunda-feira, é capitalismo.
e todas as vezes que você acordou num sábado correndo achando que estava atrasada e/ou acordou numa terça-feira achando que era domingo e desligou o despertador tranquila com meio sorriso no rosto, foram armadilhas da sua mente, cansada e acostumada com uma vida regrada ao relógio-despertador.

odeio despertadores na mesma proporção que odeio o capitalismo
odeio o capitalismo na mesma proporção que odeio acordar cedo todo dia
odeio acordar cedo todo dia na mesma proporção que odeio ponto eletrônico
odeio ponto eletrônico na mesma proporção que odeio o patriarcado.

alguém escreveu em algum muro de algum lugar e galeano leu: eu não quero sobreviver, eu quero viver.

ode ao ódio III

ode ao ódio I

a gente não quer, mas a gente odeia — às vezes a gente quer sim. odeia as tatuagem, o que jeito que fala, onde já foi — principalmente o que pensa y consequentemente o que faz. a gente odeia sim. odeia y parece rivalidade feminina. odeia y parece manha ou ciúmes. odeia y parece gratuito. mas não é. se tem uma coisa que é, é caro. a gente odeia até a tranquilidade. a simpatia y a polidez que aprenderam bem. às vezes odeia e nem pá. olha pro lado, muda de assunto, vai mijar. outras vezes odeia mesmo. do peito latejar. eu odeio e não ligo. não me faz mal odiar. o ódio alimenta a classe de baixo e nos faz mais fortes, mais convencidas y confiantes. odiar o que vem de cima nos dá autoestima às vezes. ganas pra luta.

[o nome pode ser ode ao ódio ou áries pobre. escrevi pensando nesse povo que ostenta drinque de vinte conto no rolê “alternativo”. nesse povo que viaja pras europa e fala “mas aqui é brasil” dando de entender “aqui posso tudo”. esse povo que organiza “som legal”, mas sempre “esquece” de questionar, racializar e tornar acessível financeiramente. esse povo que pensa várias coisas sobre política na bolha de amigas da mesma cor e classe. o nome pode ser ode ao ódio ou áries pobre]

coma arroz tenha fé nas mulheres – fran winant

Coma arroz tenha fé nas mulheres
O que eu não sei
Eu ainda posso aprender
Se estou sozinha agora
Estarei com elas mais tarde
Se estou fraca agora
Posso me tornar forte
Lentamente, lentamente
Se aprender, posso ensinar as outras
Se as outras aprenderem antes
Eu devo acreditar
Que elas voltarão e me ensinarão
Elas não vão embora do país com seu conhecimento
E me enviarão uma carta em algum momento
Devemos estudar todas as nossas vidas
Mulheres vindas de mulheres
Indo para mulheres
Tentando fazer tudo que pudermos
Com as palavras
Em seguida, tentar trabalhar com ferramentas
Ou com nossos corpos
Tentando ficar o tempo que for preciso
Lendo livros quando não há professores
Ou quando eles estão muito distantes
Ensinando a nós mesmas
Imaginando outras lutando
Devo acreditar que nós estaremos juntas
E construir confiança o suficiente
Para que quando eu precise lutar sozinha
Eu saiba que há irmãs que
Ajudariam se soubessem
Irmãs que viriam
Para me apoiar mais tarde

Mulheres exigindo liberdade
Cada uma com suas necessidades
Nossa vida completamente dilacerada
Pela velha sociedade
Nunca nos dando o amor ou o trabalho
Ou a força ou a segurança ou a informação
Que nos poderia ser útil
Nunca ajudadas pelas Instituições
Que nos aprisionam
Quando precisamos de cuidados médicos
Somos abatidas
Quando precisamos da polícia
Somos insultadas e ignoradas
Quando precisamos de pais e mães
Encontramos robôs
Treinados para nos manter em nossos lugares
Quando precisamos de trabalho
Nos dizem para nos tornarmos parte do sistema que nos destrói
Alimento que nutre
Medicina que cura
Canções que nos lembram de nós mesmas
E nos fazem querer continuar com o que importa para nós

Vamos sair de novo
Encontrando as mulheres que saem pela primeira vez
Sabendo que esse amor faz uma boa diferença em nós
Afirmando uma vida contínua com mulheres
Devemos ser amantes médicas soldadas
Artistas mecânicas agricultoras
Todas em nossas vidas
Ondas de mulheres
Tremendo de amor e raiva

Cantando, nós devemos enfurecer
Beijando, virar e quebrar a velha sociedade
Sem nos tornarmos os nomes que elogiam
As mentes que pagam

Coma arroz tenha fé nas mulheres
O que eu não sei agora
Ainda posso aprender
Lentamente, lentamente
Seu eu aprender posso ensinar as outras
Se as outras aprendem antes
Eu devo acreditar
Que elas voltarão e me ensinarão

fran winant – Tradução por Marcella

Margarita Pisano “O Triunfo da Masculinidade” – Tradução

Tradução de “O Triunfo da Masculinidade”, da chilena, lésbica e feminista radical Margarita Pisano.

https://pt.scribd.com/document/341673780/Margarita-Pisano-O-Triunfo-Da-Masculinidade-Traducao-Completa

Tradução coletiva feita pelo grupo Estudos no Brejo, que acontece semanalmente no Brejo das Flores. São Paulo, $P. 2017. É livre e incentivada sua divulgação, impressão e difusão. Viva as sapatão resistência!

Luana foi morta claramente por ser negra.
claramente por ser negra e da periferia.
Periférica não só por onde está sua casa, mas à margem:
à margem da heterossexualidade, Luana foi lésbica;
à margem da Instituição Família, Luana foi mãe só;

Clara
Sua morte foi clara.
A cada dia mais assassinatos claros,
embranquecidos,
brancos.

Eles querem branquear tudo.

Tenho tentado me manter sóbria – Sobre álcool e capitalismo.

Estou há três meses evitando consumir álcool e tenho conseguido me manter sóbria (exceto numa noite). A princípio parei de beber para seguir um tratamento de ginecologia natural (contra candidíase) e é óbvio que foi difícil nega-lo. Às vezes eu soo exagerada pra mim mesma quando penso sobre a presença do álcool na minha vida, mas olhando com verdade — mulher, pobre, 24 anos, solteira sem filhas, morando com as amigas — eu represento bem uma faixa jovem de consumidoras de álcool, e eu poderia dizer facilmente que 95% das pessoas que me cercam consomem álcool no mínimo uma vez na semana. E nós consumimos muito álcool.

Anos atrás, quando eu ainda era politicamente contra todo tipo de entorpecentes e consumia álcool muito esporadicamente, minhas críticas ao álcool eram exatamente as que eu tenho hoje:
As pessoas ficam bêbadas (e muitas vezes chatas pra porra);
Não controlam totalmente suas ações (ou tem aval social para isso);
Brigam, agridem, abusam e estupram e depois colocam a culpa no álcool;
São mais facilmente manipuláveis e ficam fisicamente à deriva (principalmente mulheres);
A publicidade é misógina;
Se trata de uma Indústria milionária;
Gastamos o dinheiro que não temos (ou que poderia ser usado em algo mais útil);
Ficamos politicamente estagnadas (só naquele momento? Ok. Mas e quem bebe toda semana? E todo dia? E a ressaca?).
E todas essas críticas cabem perfeitamente em: ausência de crítica radical sobre nossas ações cotidianas.

Ao longo dos últimos três anos fui abandonando esses pensamentos e aos poucos comecei a me achar muito carola por pensar isso. Nesses três anos passei a me relacionar cada vez mais com pessoas que usavam algum tipo de entorpecentes e/ou que frequentavam assiduamente bares, depois passei a trabalhar e militar com pessoas com esse mesmo hábito e, não por coincidência, passei a beber quase que diariamente.

Calma, eu não vou fazer um texto sobre como as más influências nos tiram do caminho de jesus.

Beber quase que diariamente era uma decisão. Eu gosto do sabor da cerveja — principalmente em dias quentes (e das cachaças nos dias frios rs). Eu gosto (quase sempre) do ambiente bar-cerveja-conversa. Mas é bom lembrar: todos esses “gostos” são construídos socialmente, eu me acostumei com o gosto amargo da cerveja, eu aprendi que não curtir beber era ser moralista, eu aprendi que o ambiente de bar era um lugar masculino e que, como feminista, era massa eu ocupar esse lugar. De qualquer forma, beber uma depois do almoço ou depois do trampo (ou os dois) se tornou rotina e era uma maneira muito boa (muito boa mesmo) de esquecer ou relaxar um pouco dos problemas que enfrentávamos no trampo/militância.

E esse é um dos pontos principais:

Trabalhar, militar (e pra muita gente apenas sobreviver) é psicologicamente difícil. Queremos e precisamos muitas vezes nos desligar um pouco, encher a cara com as amigas e cantar (ou chorar) (ou os dois). Mas isso não é “parte da vida”, é reflexo da vida de merda que levamos nesse Sistema.
Nunca vou me sentir no direito de dizer a alguém que precisa relaxar um pouco, que na verdade ela deveria estar sóbria e lutando.
Só que a questão não está no que EU digo pras pessoas fazerem ou não, mas no que o Sistema diz. O Capitalismo diz que pra gente ficar bem e relaxar a gente tem que consumir algo. Repare que toda ‘diversão’ dentro desse sistema é comprável. Encontrar as amigas? Só se for num restaurante ou *óbvio* um bar.

(Se você bebe, tente o seguinte exercício: encontre suas amigas num lugar que não seja um bar e onde vocês não consumam álcool. Ou melhor ainda: pare de beber e tente frequentar os mesmos lugares que frequenta hoje).

Um dos meus principais incômodos assim que parei de beber foi perceber como todos os lugares que eu mais frequentava eram centrados no consumo de álcool e como a socialização e amizade e presença giravam em torno dele. Esses lugares se tornavam terrivelmente chatos se eu estava sóbria. E isso inclui as pessoas.

Ficar bêbada é uma das opções de ‘diversão’ que o capitalismo oferece. Para ficar bêbada a gente tem que dar em troca aqueles papeizinhos que ele inventou, chamados dinheiro. Tenho que dizer que precisamos de um trampo pra ter dinheiro? – tá, tem gente que não precisa – mas nós precisamos. E é muito importante que precisemos de um trampo: são 8h + 2h de transporte (ou 3h, ou 4h). É um salário que banca as contas e, quando bebemos, o álcool será incluído nas contas. A gente vive apertada, mas não deixa de beber.

Três anos atrás, eu (repito: mulher jovem, solteira sem filhas, na época morando com minha família e bancando parte das contas de lá) recebia um salário de R$800,00 e não bebia. Me sobravam pelo menos R$200,00 todo mês. Depois que passei a beber quase diariamente, recebendo uns R$1000,00 e ainda vivendo na mesma casa, nada me sobrava.
É nosso dia inteiro, nossa semana inteira, nosso mês inteiro pro Sistema. Arranjamos tempo pra lutar, é óbvio que sim, mas é nas brechas do Sistema que fazemos isso. E é um privilégio que temos, porque muita gente não tem absolutamente tempo nenhum.

O Sistema quer que a gente trabalhe e depois fique inerte? (e aqui eu problematizo o álcool como agente forçador dessa estagnação) Sim.
Também quer que: i) não vejamos isso (e mais uma caralhada de coisa), ii) não lutemos contra essas coisas, iii) não tenhamos possibilidade (nem material, nem psicológica, nem acúmulo de prática, nem de teoria, nem tempo) de criar e sustentar modos de vida radicais e revolucionários dentro do nosso cotidiano.
Pense com sinceridade sobre o que significa “happy hour”.

Não estou jogando aqui “todas as pessoas deveriam largar seus empregos, parar de beber e fazer a revolução” (não?). Muito menos ficar crucificando individualmente quem bebe por N motivos. Mas fico pensando como raios podemos ser feministas, anticapitalistas, acreditar em revolução cotidiana, que o pessoal e político e ao mesmo tempo defender com unhas e dentes modos de vida que nos fazem simplesmente consumidoras em estagnação?

Perceba, nesse meu relato falta problematizar mil coisas. A publicidade é misógina, a violência (principalmente a doméstica) é agravada pelo consumo de álcool, seu consumo estraga o corpo de diversas formas, o alcoolismo causa isolamento e é ferramenta de extermínio de pobres (assim como as drogas, mas isso é outro assunto). Falta também dizer o que são as outras drogas lícitas e a quem servem. E todas essas coisas são pautas da nossa luta.

Conseguimos abandonar vários hábitos escrotos de consumo, deixamos de frequentar muitos lugares, reinventamos várias formas de existir e conviver, mas defendemos ideológica e politicamente o consumo de álcool.
Como disseram as companheiras do coletivo anarquista La Vaga Que Volem, em uma carta explicando porque não aceitariam na campanha delas dinheiro arrecadado com a venda de cerveja, “É verdade, todas temos práticas à margem da militância e inclusive contradições, mas nenhuma delas é levantada como bandeira, nenhuma é usada como referência de nosso movimento”, por que estamos fazendo isso?

A gente quer ócio criativo, daí existe o álcool e outras drogas: ficamos apenas com o ócio (que melhor seria chamado de inércia).

[traduzi a carta do coletivo La Vaga Que Volem, tá aqui: https://cirandabruta.noblogs.org/post/2016/09/17/carta-la-vaga-que-volem/ ]