eu sempre sou jogada de volta pro armário. ao menor deslize BRUM tudo escuro gosto de madeira e lustra móveis. às vezes eu saio chutando a porta, às vezes permaneço um pouco respirando o mofo, recolhendo os pedaços. a (re)saída nunca tem glamour, e mesmo as explosivas não são bonitas. você só voltou pra lá –mesmo que por instantes— porque as pessoas sabem/entenderam o que você é, e não te querem aqui fora. todas as portas de armário são portas do fundo.

[meio do caminho: não-lugar. sete encruzas não trilhadas com velas de sete dias queimadas até o finalzinho] sem trilha o caminho foi borrado — não sei se pra eu não achar ou pra não nos acharem. tô perdida e sempre me sinto sem lugar, (…) mas me olho no espelho-fotografia e a pele dela me diz você é, eu sou. eu tô buscando numa trilha apagada qualquer sinal fio de cabelo ou brasa. só me dizem sim o espelho a fotografia e a história. e o vento e os sonhos e o arrepio. só aquela da foto me diz sim, como quem olha uma filha por muitos anos, pr’além do que se calcula uma geração — ela me olha em desafio, como avó nanãna: vai viver, desobedeça como eu fiz e como eu não pude também. principalmente como eu não pude. trilha borrada, mas de linhagem forte: só me dizem sim o espelho a fotografia e a história.

8 de maio 2020

exilada lua em cabra sem lar. deslocada. sem conforto, ninguém sabe quem eu realmente sou. nem eu. sempre em desconforto, fronteiriça. mal estar é lugar comum. aprendi a dissimular e todo dia que eu minto gaguejo menos. na garganta acumulo todos os gritos que não dei. olho firme nos olhos pra dizer qualquer coisa que traduza “você não me atinge” e mesmo que seja perceptível que fui atingida, ela não avança. eu subo muros em volta de mim. errada ou certa, na porta da cara ainda levo escrito “não perturbe”. cada uma sabe de si e de sua couraça.

peixes

eu chorei por quatro horas seguidas porque era a única água disponível p/ encher meu peito de peixe.
[imagine um tanque, ou represa, lago, até mesmo o mar — eu não sei o tamanho do meu peito — cheio de peixes: com a água pela metade eles ficam agitados e angustiados]
eu chorei quatro horas seguidas pra encher meu peito e os peixes poderem nadar tranquilamente.
(…)
ao menos entre nuvens um sol tímido se mostra. a boca do meu estômago dói porque voltei a tossir.
meus olhos agora esbugalhados como dos peixes não trazem realmente surpresa. eu esperava mais da vida e das pessoas e poder chorar é uma bênção: tem gente que não chora.
fui comer pastel na feira de óculos escuros. a cura não é linear.
abundância é coisa séria.

Nanãna. Sempre que eu vejo minha mãe e suas duas irmãs minhas tias pensamos e falamos dela, mesmo que pouco, mesmo que por um instante. Não conheci minha avó e tudo que sei dela é porque me contam histórias sobre sua vida. Sempre fui apaixonada por essa mulher e quando era bruxinha pequena e acreditava em reencarnação, gostava de pensar que eu era ela e ela era eu. nunca contei isso pra ninguém. Esses dias conversando com cibelinha pensava sobre biologia e minha brisa era de que todas as partes do meu corpo, todas as minhas mitocôndrias belezinhas e resistentes, queriam seguir essa linhagem. Não é desmerecendo não, é que nascer com útero é muita coisa. Mesmo que do meu nunca saia uma criança — e não vai sair. Mesmo as que não tem útero, ou que por algum motivo tenha deixado de ter {nanãna tirou o útero com 42 anos por causa de um fibroma}. São ciclos que se impõem, é sangrar sem ferida. Já pensou morrer todo mês? A melhor parte é renascer.
Amanhã minha avó faria 91 anos.

imagine que você está andando na rua, noite caindo e de relance você vê uma bruxa na janela de cima de uma casa. ela te encara profundamente. está comendo um pedaço de pão com as mãos sujas de terra. no parapeito da janela uma arruda. você segue caminhando e sente seu olhar latejando na nuca. A bruxa é você a casa é você a arruda e a janela são você. você também é o pão. não se assuste: você ainda é a pessoa andando na rua.

a bruxa está esperando a tempestade chegar.

———————————————–escrito no escuro.

leveza eu só almejo. aqui o peso pesa o barro de quem veio debaixo da terra deslizando y remexendo terra corpo dança em movimento circular: tronco quadril dedo, me mexo. suja. sou do calor de suor escorrendo embaixo do peito sem top.

meu corpo só respira se tem Sol. sinto saudade do som do trovão.

abundância

natural apenas em alguém que não cresceu sob o patriarcado, a qualidade do muito, do transbordante, do não-escasso é muitas vezes ignorada, teoricamente rechaçada ou até sofridamente abandonada.

flerto com a abundância como quem flerta utopias. gosto de sua grandeza marítima, de como ocupa preenchendo como a ventania, a abundância é uma das qualidades mais sensíveis da natureza. a grandiosidade, a quantidade diversa, o sentimento do Todo. Imensidão de tirar o ar. A abundância reside no pertencimento do imenso.

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onde come uma come duas. bota mais água no feijão. puxadinho. dormir de valete. dividir em duas, em três, em quatro partes… cada uma leva um prato. vaquinha.

__________________abundância em escassez.

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que as relações entre lésbicas não se pautem na escassez patriarcal, mas na abundância [da natureza]. que a gente crie um novo jeito de afeto. que esse afeto possa ser para amigas parceiras mães artes para si. bastante. que a gente não caia na besteira blasé de frieza de pouco afeto de pouco interesse de pouca admiração de pouco calor.

inventar uma nova ética amorosa lésbica nos baseando em nós mesmas. na abundância marítima que cada lésbica leva no ventre.

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também é escassez patriarcal todo seu afeto ser direcionado a pessoa com quem transa. e mesmo nas relações livres onde o foco é achar outras pessoas com quem transar. também é pensar fora da ética patriarcal quando retiramos o sexo do centro de tudo.

[são ideias para uma zine]

mulher lameada enlamaçada terrível feia y suja como não se pode ser como não se deve ser. braba enlamaçada cheia de lama fala alto, mas silencia quando ouve ventania. também se falam por lá. anuncia quebranto e tragédia ou verão y apaixonamento. fêmea enlamaçada na língua de otra fêmea. não teme o feio sujo y proibido roçar das pernas coxas terra vulvas que roçam esse som tão antigo. escuro. por dentro não há luz. tateamos. e não há um poro no meu corpo que não seja poça d’água funda.

ciranda em fogo de vela arruda y juana. grande espaçosa que dança toca y canta pernambucana de algum lugar de dentro de antes — de sempre. saber ser só ser grande de fogo y fumaça boa de incenso. corpo quente no frio solstício de inverno eu tanto te temi mas existe uma força nas coisas boas banho bom fumo bom cobertas muitas, roupa em cima de roupa. o eucalipto eu coloquei embaixo do chuveiro. dor na cara que eu cuido com xale e chá de erva. e calor de beijo bom e conversa conversa conversa terapia conversa. frio e ciranda junina ciranda de dentro bruta bruta