Nanãna. Sempre que eu vejo minha mãe e suas duas irmãs minhas tias pensamos e falamos dela, mesmo que pouco, mesmo que por um instante. Não conheci minha avó e tudo que sei dela é porque me contam histórias sobre sua vida. Sempre fui apaixonada por essa mulher e quando era bruxinha pequena e acreditava em reencarnação, gostava de pensar que eu era ela e ela era eu. nunca contei isso pra ninguém. Esses dias conversando com cibelinha pensava sobre biologia e minha brisa era de que todas as partes do meu corpo, todas as minhas mitocôndrias belezinhas e resistentes, queriam seguir essa linhagem. Não é desmerecendo não, é que nascer com útero é muita coisa. Mesmo que do meu nunca saia uma criança — e não vai sair. Mesmo as que não tem útero, ou que por algum motivo tenha deixado de ter {nanãna tirou o útero com 42 anos por causa de um fibroma}. São ciclos que se impõem, é sangrar sem ferida. Já pensou morrer todo mês? A melhor parte é renascer.
Amanhã minha avó faria 91 anos.

coma arroz tenha fé nas mulheres – fran winant

Coma arroz tenha fé nas mulheres
O que eu não sei
Eu ainda posso aprender
Se estou sozinha agora
Estarei com elas mais tarde
Se estou fraca agora
Posso me tornar forte
Lentamente, lentamente
Se aprender, posso ensinar as outras
Se as outras aprenderem antes
Eu devo acreditar
Que elas voltarão e me ensinarão
Elas não vão embora do país com seu conhecimento
E me enviarão uma carta em algum momento
Devemos estudar todas as nossas vidas
Mulheres vindas de mulheres
Indo para mulheres
Tentando fazer tudo que pudermos
Com as palavras
Em seguida, tentar trabalhar com ferramentas
Ou com nossos corpos
Tentando ficar o tempo que for preciso
Lendo livros quando não há professores
Ou quando eles estão muito distantes
Ensinando a nós mesmas
Imaginando outras lutando
Devo acreditar que nós estaremos juntas
E construir confiança o suficiente
Para que quando eu precise lutar sozinha
Eu saiba que há irmãs que
Ajudariam se soubessem
Irmãs que viriam
Para me apoiar mais tarde

Mulheres exigindo liberdade
Cada uma com suas necessidades
Nossa vida completamente dilacerada
Pela velha sociedade
Nunca nos dando o amor ou o trabalho
Ou a força ou a segurança ou a informação
Que nos poderia ser útil
Nunca ajudadas pelas Instituições
Que nos aprisionam
Quando precisamos de cuidados médicos
Somos abatidas
Quando precisamos da polícia
Somos insultadas e ignoradas
Quando precisamos de pais e mães
Encontramos robôs
Treinados para nos manter em nossos lugares
Quando precisamos de trabalho
Nos dizem para nos tornarmos parte do sistema que nos destrói
Alimento que nutre
Medicina que cura
Canções que nos lembram de nós mesmas
E nos fazem querer continuar com o que importa para nós

Vamos sair de novo
Encontrando as mulheres que saem pela primeira vez
Sabendo que esse amor faz uma boa diferença em nós
Afirmando uma vida contínua com mulheres
Devemos ser amantes médicas soldadas
Artistas mecânicas agricultoras
Todas em nossas vidas
Ondas de mulheres
Tremendo de amor e raiva

Cantando, nós devemos enfurecer
Beijando, virar e quebrar a velha sociedade
Sem nos tornarmos os nomes que elogiam
As mentes que pagam

Coma arroz tenha fé nas mulheres
O que eu não sei agora
Ainda posso aprender
Lentamente, lentamente
Seu eu aprender posso ensinar as outras
Se as outras aprendem antes
Eu devo acreditar
Que elas voltarão e me ensinarão

fran winant – Tradução por Marcella

notas: AMARASMULHERES

depois (depois?) de processo de cura primeiro, busco olhar pela janela. respirar o vento e o pólen que elas exalam. sentir seus cheiros. olhar. nesse primeiro passar olhar é o único horizonte com o qual me preocupo.

— pra engolir a ansiedade que nasceu como corpo estranho e se tornou meu corpo. os últimos tempos foram cinza e a única promessa que fui capaz de fazer a mim mesma é que do que o patriarcado fez de mim, faria asa. —

olho pela janela. o vento que bate na cara é bom e forte e frio como tem que ser.

amar as mulheres tem sido uma mulher. tem sido uma casa também, tem sido quatro mulheres. tem sido –e pra mim é como se tivesse sido sempre—uma mulher vermelha.

amar as mulheres tem sido acompanhar de longe-perto uma mulher que amo desde que me entendo por gente voltar a se amar e se cuidar depois de um período turbulento.

amar as mulheres tem sido olhar pra mim também. lesbianizar porque me amo e amo meu corpo-mulher.

me foi ensinado um amor antimulher muito eficaz, é certo. a gaiola da rivalidade feminina se anuncia sobre minha cabeça mais vezes do que eu gostaria e suporto. diversas vezes ela se acomoda ao meu redor. meu esforço tem sido e será me debater até sair.

amar as mulheres tem sido respirar quando falta o ar. bater asas é devir.

não quero [só] amar. não quero viver de amor.
pisano sussurra no meu ouvido que feminilidade é domesticação. e eu concordo e eu concordo e eu concordo.
amor romântico não é frase leve. leia de novo: amor romântico. é doença é doença. é amargo de tão doce. faz mal. me mata aos pouquinhos. come minha leveza. come minha espontaneidade. come meu frescor.

e faz tempo que eu sei disso. mesmo quando não sabia, mesmo quando sofria esperando que a resolução fosse um relacionamento perfeito que iria aparecer no horizonte em algum momento: sabia que me enganava. sabia que desse mal nada de bom sai. não sai.

ontem boba falei pra ela “mas há meses que eu tento” [desde que estou com ela] e ela, sábia que é, me diz “em meses a gente engatinha”.

não quero viver de amor. não quero pensar em amor. odeio amor. porque é exatamente sobre isso que se trata o amor romântico. ódio, rancor, ciúme, medo. insegurança insegurança insegurança. e muitas vezes em mim vem como desespero-buraco-na-barriga.

às vezes esqueço que amar é bom. e sepá eu devia esquecer mesmo. pensar só em autoamor. só em me autoamar. cuidar de mim e do meu corpinho e dessa cabeça que tem dias que não adianta não funciona e não produz porque não dá.

a feminilidade é domesticação. a cabeça da mulher está doente. o corpo da mulher tem que aprender a amar no plural. em eu-elas. e não amar casal. não amar romântico porque isso adoece.

a cabeça-corpo-coração-pulmão mulher tem que aprender a amar amiga.

______________

sepá a cura está aí. o amar-amiga pode trazer sexualidade, pode trazer paixão. mas não traz carga pesada que é romance.

desaprender.
amar aS mulhereS
despatriarcalizar.

vômito

[ATENÇÃO: esse texto é um gatilho para traumas adquiridos pela heterossexualidade compulsória]

Avistou o alecrim e vomitou.
Longamente vomitou.
___nunca mais pode sentir seu gosto, seu cheiro ou ver seu aspecto pontudo sem uma densa náusea.

Vomitou café da manhã-almoço
vomitou água
teria vomitado intestino-útero-pulmão se ainda os tivesse.

Ela estava oca.

Oca desde a terça-feira passada que, ao chegar em casa com a muda da planta alegre na mão foi abordada por seu companheiro que beijoabraçocarinhosorriso a estuprou. Ela empurrou, disse que não tava afim, argumentou cansaço, mas ele queria “transar” então a estuprou. Ela não brigou, nem gritou… sequer falou.
Foi direto pro banheiro
se lavou
e vomitou todos os órgãos ao perceber que nunca havia “transado”.

Era impossível mensurar quantas vezes esteve ali, naquele lugar, segurando a náusea e esperando acabar.
mas nunca havia vomitado.
o cheiro do alecrim era impossível de suportar.

foi embora na mesma madrugada, aos berros.
O som ecoava dentro de seu oco.

Chegou na casa da irmã com arruda num vaso.

Seis dias depois, voltando do trabalho avistou o alecrim e vomitou.

A brisa que surgiu na rua a ajudou a recuperar o fôlego.

lésbica

Lésbica_________________
Aliviada

não-fingir-não-simular-não-fingir-não-sorrir-não-fingir-não-assentir-não-aceitar

não ser agradável

lésbica
estar com o corpo nessa palavra
é como estar com o corpo imerso
no mar
na lama
em nós
em mim mesma.

não sorrir-não agradar-não sorrir-não agradar-não sorrir-não sorrir-não sorrir

É poder antes de tudo negar,
então eu nego.

bonitinha liberadinha gostosinha namoradinha decorativa bi heterossexualizada

Sororidade é quando cê tá com as duas mãos paradas no trinco da janela, aí vem uma mana e abre
estar com o corpo nessa palavra é como estar com o corpo finalmente sob o Sol.

lésbica
janela de Safo
Ilhas de Lesbos urbanas

Viva as sapatão resistência
viva vocês
viva nóis.

colmeia

hermana
mana

borboleta
formiga
cobra
aranha
baleia

abelha

de todas as coisas que nos unem
escolho a pele arrepiada
o entreolhar
a gargalhada

das fortes lembranças:
manada
todas juntas
pés firmes no chão
grito
palavra de ordem
insubmissão

Ódio como combustível
e amor pelas nossas

tem gente querendo tirar isso de nóis

— de novo —

E de todas as coisas que nos matam e nos fazem sangrar
aprendo: a cura é coletiva.
nós lambemos nossas feridas
Em rituais de sororidade
nós lambemos essas feridas
umas das outras.

há séculos em volta da fogueira, na batucada
fazendo chá ou presenteando com espéculos

caminhamos
em manada
em matilha
e nessa colmeia
Rainha somos todas nós juntas.

“Sou herdeira de rezas e benzeduras. De mulheres que encontraram nos contornos da castração social, brechas por onde deixar infiltrar os poderes ancestrais femininos. Mulheres que cultivam remédio para todos os males, entre flores e folhas, histórias e sonhos, palavras e canções. […] Sou herdeira de mulheres simples, sabedoras, que fazem da rotina um ritual. Com a vassoura varrem os pensamentos ruins, as lembranças difíceis, e assim vão varrendo até a calçada, até a estrada. Fazem da casa um relicário, baús que guardam histórias tramadas no algodão, o café exalando aroma de saudade gostosa. Fazem do quintal um altar, lugar maior que o mundo, composto de silêncios e de restos, repleto de símbolos de poder.”

amar as mulheres

MULHERES são seres-janelas.
lufadas de ar. de oxigênio.
um respirar em baixo d’água.
“feminismo para no ahogarse”

Sororidade é um sentimento tão profundo, tão imerso nas lamas
que é sangrar junto
(física-psicologicamente)
é entender e empatizar o sangrar da outra.
“Sangramos fino eterno e fundo”

Sangramos.

Não há dúvidas de que sangramos esse patriarcado.
diariamente.
amar cuidar saudar tocar lamber esse sangue
meu-delas
é revolução cotidiana.

é preciso amar as mulheres

(a nós mesmas e nossas amigas-irmãs)
é preciso confiar nas mulheres
(a que está cercana e a que não conhecemos)
é preciso priorizar as mulheres
(em tudo)

***

Pés no chão pra ficar perto de mainha

Banho de chuva pra lembrar das abuelitas – de ambos os lados.

Arruda no cabelo pra ser eu mesma, pra criar meus meios de purificar. Pra cheirar cheiro que me agrada. Pra ser curandeira de mim mesma.

***

(fev.2016)