Nanãna. Sempre que eu vejo minha mãe e suas duas irmãs minhas tias pensamos e falamos dela, mesmo que pouco, mesmo que por um instante. Não conheci minha avó e tudo que sei dela é porque me contam histórias sobre sua vida. Sempre fui apaixonada por essa mulher e quando era bruxinha pequena e acreditava em reencarnação, gostava de pensar que eu era ela e ela era eu. nunca contei isso pra ninguém. Esses dias conversando com cibelinha pensava sobre biologia e minha brisa era de que todas as partes do meu corpo, todas as minhas mitocôndrias belezinhas e resistentes, queriam seguir essa linhagem. Não é desmerecendo não, é que nascer com útero é muita coisa. Mesmo que do meu nunca saia uma criança — e não vai sair. Mesmo as que não tem útero, ou que por algum motivo tenha deixado de ter {nanãna tirou o útero com 42 anos por causa de um fibroma}. São ciclos que se impõem, é sangrar sem ferida. Já pensou morrer todo mês? A melhor parte é renascer.
Amanhã minha avó faria 91 anos.

imagine que você está andando na rua, noite caindo e de relance você vê uma bruxa na janela de cima de uma casa. ela te encara profundamente. está comendo um pedaço de pão com as mãos sujas de terra. no parapeito da janela uma arruda. você segue caminhando e sente seu olhar latejando na nuca. A bruxa é você a casa é você a arruda e a janela são você. você também é o pão. não se assuste: você ainda é a pessoa andando na rua.

a bruxa está esperando a tempestade chegar.

———————————————–escrito no escuro.

leveza eu só almejo. aqui o peso pesa o barro de quem veio debaixo da terra deslizando y remexendo terra corpo dança em movimento circular: tronco quadril dedo, me mexo. suja. sou do calor de suor escorrendo embaixo do peito sem top.

meu corpo só respira se tem Sol. sinto saudade do som do trovão.

abundância

natural apenas em alguém que não cresceu sob o patriarcado, a qualidade do muito, do transbordante, do não-escasso é muitas vezes ignorada, teoricamente rechaçada ou até sofridamente abandonada.

flerto com a abundância como quem flerta utopias. gosto de sua grandeza marítima, de como ocupa preenchendo como a ventania, a abundância é uma das qualidades mais sensíveis da natureza. a grandiosidade, a quantidade diversa, o sentimento do Todo. Imensidão de tirar o ar. A abundância reside no pertencimento do imenso.

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onde come uma come duas. bota mais água no feijão. puxadinho. dormir de valete. dividir em duas, em três, em quatro partes… cada uma leva um prato. vaquinha.

__________________abundância em escassez.

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que as relações entre lésbicas não se pautem na escassez patriarcal, mas na abundância [da natureza]. que a gente crie um novo jeito de afeto. que esse afeto possa ser para amigas parceiras mães artes para si. bastante. que a gente não caia na besteira blasé de frieza de pouco afeto de pouco interesse de pouca admiração de pouco calor.

inventar uma nova ética amorosa lésbica nos baseando em nós mesmas. na abundância marítima que cada lésbica leva no ventre.

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também é escassez patriarcal todo seu afeto ser direcionado a pessoa com quem transa. e mesmo nas relações livres onde o foco é achar outras pessoas com quem transar. também é pensar fora da ética patriarcal quando retiramos o sexo do centro de tudo.

[são ideias para uma zine]

mulher lameada enlamaçada terrível feia y suja como não se pode ser como não se deve ser. braba enlamaçada cheia de lama fala alto, mas silencia quando ouve ventania. também se falam por lá. anuncia quebranto e tragédia ou verão y apaixonamento. fêmea enlamaçada na língua de otra fêmea. não teme o feio sujo y proibido roçar das pernas coxas terra vulvas que roçam esse som tão antigo. escuro. por dentro não há luz. tateamos. e não há um poro no meu corpo que não seja poça d’água funda.

ciranda em fogo de vela arruda y juana. grande espaçosa que dança toca y canta pernambucana de algum lugar de dentro de antes — de sempre. saber ser só ser grande de fogo y fumaça boa de incenso. corpo quente no frio solstício de inverno eu tanto te temi mas existe uma força nas coisas boas banho bom fumo bom cobertas muitas, roupa em cima de roupa. o eucalipto eu coloquei embaixo do chuveiro. dor na cara que eu cuido com xale e chá de erva. e calor de beijo bom e conversa conversa conversa terapia conversa. frio e ciranda junina ciranda de dentro bruta bruta

não engole cospe. não engole cospe. não entala porta de entrada pra dentro de si. território meu meu porta fechada boca cerrada sorriso que anuncia o bote sorriso que anuncia a dentada tosse. não digere. não digere. oca. nada no teu corpo nasceu para digerir culpa desculpa ausência carência ciúme culpa medo medo medo não engole não se engole ninguém bota na boca tamanho objeto. cospe vê se cospe desencosta aproveita y pula abismo sem janela lembra? lembra garganta sem catarro sem tosse? não engole não engasga tosse. lembra do abismo profundo bonito garganta infinita do escuro da lama preta fértil do corpo nu vestido de nanã do começo da primeira primeira invisível porque escuro invisível porque primeira sem olhos outros pra olhar. era ela o abismo e a lama.

[feito na oficina da Mayara Árvore no encontro Juntá, Sã Luiza da Paraitinga, junho 2019)

zine utopias lésbicas

ACORDEI COM O SOL NA JANELA, vou como de costume assar a massa que deixei crescendo durante a noite. cuando as otras acordarem a casa terá cheiro de pão.
ainda estou semidespida, o calor desse verão é muito forte – eu adoro.
a lembrança que a nudez pode se tornar um problema é distante, como uma pulga atrás da orelha de quem aprendeu a viver com medo.
desaprender leva tempo, mas é mais fácil aqui: onde esse medo não existe concretamente. as meninas que aqui crescem não estão mutiladas pelo medo: jamais carregarão cicatrizes como as minhas y essa certeza me cura.
aos poucos as mulheres acordam. cada uma ao seu tempo. dormimos juntas quando queremos, mas todas têm seu espaço – aprendemos solitude de una maneira doce – o único quarto coletivo fixamente é o das crianças, cuidam-se entre si y se divertem mais em alcateia.
o café da manhã aos poucos se torna una roda animada, umas contam o sonho que tiveram, otras ajudam a interpretar, lembramos de histórias y mitos que ajudam a entender as simbologias, contamos histórias às crias y unas às otras. aos poucos vamos saindo da mesa y geralmente só sobram as mais falantes.
eu peguei o hábito de andar de bicicleta ou à cavalo depois do café da manhã. sentir o vento correr em meu rosto nesse descampado sobre pedras tão velhas,
cuidar do meu silêncio,
tomar sol.

UTOPIAS LÉSBICAS

a zine completa para baixar aqui

ode ao ódio III

o nome daquele sentimento estranho de estar com uma pedra no sapato, mas não parar pra tirar porque se está atrasada pela quarta vez essa semana tornando a manhã dessa quinta-feira já longa demais, contando que ainda são 7h19, é capitalismo.
e já não bastasse ser uma segunda-feira de 16° e chuva, ainda tenho que andar rápido com meu tênis duvidoso meio ao medo de escorregar em alguma tampa de metal e cair, já que estou em cima da hora pra chegar no trabalho.
o nome daquele sentimento estranho de detestar botar seu dedo para uma luz vermelha ler sua digital e então recolher um papel que diz que você não foi rápida o suficiente é capitalismo.

[desenho: eu subindo o último beco antes de chegar no portão do prédio onde trabalho, na minha mão o celular acusa: 8h06min]

o nome daquele sentimento estranho que tantas vezes te impede de curtir o final de um domingo com Sol já que se está adiantando o pensamento doloroso de que amanhã é segunda-feira, é capitalismo.
e todas as vezes que você acordou num sábado correndo achando que estava atrasada e/ou acordou numa terça-feira achando que era domingo e desligou o despertador tranquila com meio sorriso no rosto, foram armadilhas da sua mente, cansada e acostumada com uma vida regrada ao relógio-despertador.

odeio despertadores na mesma proporção que odeio o capitalismo
odeio o capitalismo na mesma proporção que odeio acordar cedo todo dia
odeio acordar cedo todo dia na mesma proporção que odeio ponto eletrônico
odeio ponto eletrônico na mesma proporção que odeio o patriarcado.

alguém escreveu em algum muro de algum lugar e galeano leu: eu não quero sobreviver, eu quero viver.

ode ao ódio III