Tenho tentado me manter sóbria – Sobre álcool e capitalismo.

Estou há três meses evitando consumir álcool e tenho conseguido me manter sóbria (exceto numa noite). A princípio parei de beber para seguir um tratamento de ginecologia natural (contra candidíase) e é óbvio que foi difícil nega-lo. Às vezes eu soo exagerada pra mim mesma quando penso sobre a presença do álcool na minha vida, mas olhando com verdade — mulher, pobre, 24 anos, solteira sem filhas, morando com as amigas — eu represento bem uma faixa jovem de consumidoras de álcool, e eu poderia dizer facilmente que 95% das pessoas que me cercam consomem álcool no mínimo uma vez na semana. E nós consumimos muito álcool.

Anos atrás, quando eu ainda era politicamente contra todo tipo de entorpecentes e consumia álcool muito esporadicamente, minhas críticas ao álcool eram exatamente as que eu tenho hoje:
As pessoas ficam bêbadas (e muitas vezes chatas pra porra);
Não controlam totalmente suas ações (ou tem aval social para isso);
Brigam, agridem, abusam e estupram e depois colocam a culpa no álcool;
São mais facilmente manipuláveis e ficam fisicamente à deriva (principalmente mulheres);
A publicidade é misógina;
Se trata de uma Indústria milionária;
Gastamos o dinheiro que não temos (ou que poderia ser usado em algo mais útil);
Ficamos politicamente estagnadas (só naquele momento? Ok. Mas e quem bebe toda semana? E todo dia? E a ressaca?).
E todas essas críticas cabem perfeitamente em: ausência de crítica radical sobre nossas ações cotidianas.

Ao longo dos últimos três anos fui abandonando esses pensamentos e aos poucos comecei a me achar muito carola por pensar isso. Nesses três anos passei a me relacionar cada vez mais com pessoas que usavam algum tipo de entorpecentes e/ou que frequentavam assiduamente bares, depois passei a trabalhar e militar com pessoas com esse mesmo hábito e, não por coincidência, passei a beber quase que diariamente.

Calma, eu não vou fazer um texto sobre como as más influências nos tiram do caminho de jesus.

Beber quase que diariamente era uma decisão. Eu gosto do sabor da cerveja — principalmente em dias quentes (e das cachaças nos dias frios rs). Eu gosto (quase sempre) do ambiente bar-cerveja-conversa. Mas é bom lembrar: todos esses “gostos” são construídos socialmente, eu me acostumei com o gosto amargo da cerveja, eu aprendi que não curtir beber era ser moralista, eu aprendi que o ambiente de bar era um lugar masculino e que, como feminista, era massa eu ocupar esse lugar. De qualquer forma, beber uma depois do almoço ou depois do trampo (ou os dois) se tornou rotina e era uma maneira muito boa (muito boa mesmo) de esquecer ou relaxar um pouco dos problemas que enfrentávamos no trampo/militância.

E esse é um dos pontos principais:

Trabalhar, militar (e pra muita gente apenas sobreviver) é psicologicamente difícil. Queremos e precisamos muitas vezes nos desligar um pouco, encher a cara com as amigas e cantar (ou chorar) (ou os dois). Mas isso não é “parte da vida”, é reflexo da vida de merda que levamos nesse Sistema.
Nunca vou me sentir no direito de dizer a alguém que precisa relaxar um pouco, que na verdade ela deveria estar sóbria e lutando.
Só que a questão não está no que EU digo pras pessoas fazerem ou não, mas no que o Sistema diz. O Capitalismo diz que pra gente ficar bem e relaxar a gente tem que consumir algo. Repare que toda ‘diversão’ dentro desse sistema é comprável. Encontrar as amigas? Só se for num restaurante ou *óbvio* um bar.

(Se você bebe, tente o seguinte exercício: encontre suas amigas num lugar que não seja um bar e onde vocês não consumam álcool. Ou melhor ainda: pare de beber e tente frequentar os mesmos lugares que frequenta hoje).

Um dos meus principais incômodos assim que parei de beber foi perceber como todos os lugares que eu mais frequentava eram centrados no consumo de álcool e como a socialização e amizade e presença giravam em torno dele. Esses lugares se tornavam terrivelmente chatos se eu estava sóbria. E isso inclui as pessoas.

Ficar bêbada é uma das opções de ‘diversão’ que o capitalismo oferece. Para ficar bêbada a gente tem que dar em troca aqueles papeizinhos que ele inventou, chamados dinheiro. Tenho que dizer que precisamos de um trampo pra ter dinheiro? – tá, tem gente que não precisa – mas nós precisamos. E é muito importante que precisemos de um trampo: são 8h + 2h de transporte (ou 3h, ou 4h). É um salário que banca as contas e, quando bebemos, o álcool será incluído nas contas. A gente vive apertada, mas não deixa de beber.

Três anos atrás, eu (repito: mulher jovem, solteira sem filhas, na época morando com minha família e bancando parte das contas de lá) recebia um salário de R$800,00 e não bebia. Me sobravam pelo menos R$200,00 todo mês. Depois que passei a beber quase diariamente, recebendo uns R$1000,00 e ainda vivendo na mesma casa, nada me sobrava.
É nosso dia inteiro, nossa semana inteira, nosso mês inteiro pro Sistema. Arranjamos tempo pra lutar, é óbvio que sim, mas é nas brechas do Sistema que fazemos isso. E é um privilégio que temos, porque muita gente não tem absolutamente tempo nenhum.

O Sistema quer que a gente trabalhe e depois fique inerte? (e aqui eu problematizo o álcool como agente forçador dessa estagnação) Sim.
Também quer que: i) não vejamos isso (e mais uma caralhada de coisa), ii) não lutemos contra essas coisas, iii) não tenhamos possibilidade (nem material, nem psicológica, nem acúmulo de prática, nem de teoria, nem tempo) de criar e sustentar modos de vida radicais e revolucionários dentro do nosso cotidiano.
Pense com sinceridade sobre o que significa “happy hour”.

Não estou jogando aqui “todas as pessoas deveriam largar seus empregos, parar de beber e fazer a revolução” (não?). Muito menos ficar crucificando individualmente quem bebe por N motivos. Mas fico pensando como raios podemos ser feministas, anticapitalistas, acreditar em revolução cotidiana, que o pessoal e político e ao mesmo tempo defender com unhas e dentes modos de vida que nos fazem simplesmente consumidoras em estagnação?

Perceba, nesse meu relato falta problematizar mil coisas. A publicidade é misógina, a violência (principalmente a doméstica) é agravada pelo consumo de álcool, seu consumo estraga o corpo de diversas formas, o alcoolismo causa isolamento e é ferramenta de extermínio de pobres (assim como as drogas, mas isso é outro assunto). Falta também dizer o que são as outras drogas lícitas e a quem servem. E todas essas coisas são pautas da nossa luta.

Conseguimos abandonar vários hábitos escrotos de consumo, deixamos de frequentar muitos lugares, reinventamos várias formas de existir e conviver, mas defendemos ideológica e politicamente o consumo de álcool.
Como disseram as companheiras do coletivo anarquista La Vaga Que Volem, em uma carta explicando porque não aceitariam na campanha delas dinheiro arrecadado com a venda de cerveja, “É verdade, todas temos práticas à margem da militância e inclusive contradições, mas nenhuma delas é levantada como bandeira, nenhuma é usada como referência de nosso movimento”, por que estamos fazendo isso?

A gente quer ócio criativo, daí existe o álcool e outras drogas: ficamos apenas com o ócio (que melhor seria chamado de inércia).

[traduzi a carta do coletivo La Vaga Que Volem, tá aqui: https://cirandabruta.noblogs.org/post/2016/09/17/carta-la-vaga-que-volem/ ]

“Álcool, drogas y financiamento da luta”, por La Vaga que Volem

Traduzi este comunicado do coletivo anarquista La Vaga que Volem, de Barcelona, sobre sua posição em relação à venda de bebidas alcoólicas para levantar fundos que ajudariam companheiras presas e reprimidas depois de uma greve geral que aconteceu em 29 de março de 2012, (em espanhol aqui: https://vozcomoarma.noblogs.org/?p=10199).

“Através desse escrito fazemos pública a decisão que tomamos sobre como queremos afrontar o processo repressivo que se iniciou em 2012 contra um companheiro que participou da grave geral de 29 de março desse ano. Gostaríamos que esse texto e os que irão se juntando a medida que se desenvolva a campanha, sirvam de base para a abertura de um debate coletivo sobre a forma que estamos afrontando a onda repressiva contra as pessoas que, em um contexto de conflito social, participam ativamente da luta. Como reprimidas que somos, sustentamos que a única forma de fazer frente ao Estado na luta anti-repressiva é apresentar o conteúdo político das ações em que somos reprimidas e dar a elas uma dimensão coletiva.

Em resumo, este documento se concentra no financiamento da luta através da venda de álcool em festas organizadas para cobrir gastos gerados por processos judiciais. Sem dúvida o álcool e a festa vendem, cumprem esse requisito e essa função. Parece então que não podemos falar de ética libertária e da idoneidade desses meios, não só como ferramentas, mas como verdadeira prática revolucionária. Parece que não podemos questionar as festas e o álcool sem passar por moralistas, puritanas, ingênuas ou fora da realidade.

O álcool é o pilar que sustenta o financiamento do movimento e isso é uma realidade fechada (e não há outras opções para o presente). Temos pessoas presas e reprimidas, então não nos venham com romances puritanos, porque a realidade material nos obriga a seguir sustentando o ócio alienado, o alcoolismo e essas dinâmicas socializadoras como centrais no movimento. Duvidamos do caráter revolucionário ou transformador que esse tipo de festa pode ter, entre outras questões, por essa dinâmica alienante que ele gera e por estar em muitas ocasiões vazia de conteúdo político. Sim, todas temos práticas à margem da militância, inclusive contradições, mas nenhuma delas é levantada como bandeira, nenhuma é utilizada como referência de nosso movimento. Não por acaso o alcoolismo social é algo tão integrado, normalizado e enterrado por sua suposta necessidade.

Não somos contra as festas e o desfrutar, acreditamos que deve haver um espaço para tudo, e se nossa finalidade é a de unir celebrações com nossas reivindicações, também entendemos que em certas ocasiões não poderemos fazer isso, nesse caso dizemos não ao dinheiro arrecadado com a venda de álcool nessas festas. Não queremos que nossa luta se confunda com o ócio alienante e alienado. Nesse ponto nos perguntamos como poderíamos reivindicar os aspectos políticos de uma festa? Como fazê-la sem cair no consumo de álcool? Que tipo de ócio estamos fomentando nos movimentos sociais e organizações políticas com esse tipo de evento? Em que medida as festas alternativas podem seguir se autodenominando “alternativas”? Qual é a alternativa que oferecemos?

As “festas libertárias” pouco têm alternativas: não são alternativas de socialização, não são alternativas de consumo, não são alternativas de ócio e, logo, não representam a essência de nenhuma prática revolucionária, pelo contrário. Existem muitas coisas que revolucionam as pessoas: a cultura, a consciência, a prática revolucionária… Do outro lado, as drogas e o ócio alienado fazem dormir as consciências – essa é sua função, são mecanismos para ruir (e não para enfrentamento), são ferramentas de controle social que fomentam práticas que se chocam frontalmente com as ideias pelas quais lutamos, com as ideias pelas quais morremos.

A necessidade de dinheiro como desculpa para vender álcool constitui um argumento que cai por si mesmo, porque é mentira que não haja dinheiro — pelo menos há quando se trata de beber. Sem dúvida é mais fácil estender esse produto de autoconsumo, socializa-lo com uma etiqueta política para poder atrair certos setores e conseguir mais benefícios, do que trabalhar por solidariedade entre companheiras, entre as pessoas com quem lutamos e compartilhamos um projeto. Sem dúvida constitui uma via rápida, mas não é a única e a rechaçamos por isso, porque acreditamos na necessidade de construir redes de apoio livres de alcoolismo. Todas as dinâmicas coletivas e sociais são de difícil transformação, nelas deixamos tempo, saúde e a nossa pele durante anos. Sabemos que não há melhor forma de tomar consciência e transformação do que a prática, do que a propaganda pelo ato. É a prática e não as palavras, o que impulsiona as mudanças, e é por isso que decidimos não aceitar dinheiro de álcool para fazer frente a esse caso de repressão, não contribuindo assim para o fomento das dinâmicas coletivas que acreditamos prejudiciais para nosso movimento.”